top of page

Do dado científico ao projeto de lei: enganos de todos os lados

  • Foto do escritor: Paula Pereira
    Paula Pereira
  • 30 de ago. de 2019
  • 4 min de leitura

Atualizado: 8 de fev. de 2022

“Os políticos da nossa cidade não dão valor à pesquisa e tomam decisões com base em dados “não científicos”, o que acaba sendo um desserviço à população”. Isso é o que eu queria dizer quando comecei a analisar um caso envolvendo a Câmara dos Vereadores de Jundiaí. Eu queria estar certa e, apesar de achar que minha afirmação não está totalmente errada, reconheço que muito rapidamente julguei o trabalho de “um” vereador e o tratei como se ele representasse “toda” a Câmara de Jundiaí ou “todos” os políticos do município; o que definitivamente não é verdade. Como será visto mais adiante, os “enganos” ocorridos foram cometidos por mim, pelo pesquisador e pelo vereador.


Resumidamente, o caso era o seguinte: um vereador de Jundiaí desenvolveu um Projeto de Lei (Nº. 12.928/2019) que visa promover a conscientização sobre a Síndrome Alcoólica Fetal (SAF) à população. No projeto, ele descreveu o quanto a ingestão de bebida alcoólica durante a gestação pode ser prejudicial à saúde do bebê, levando-o a ter a síndrome. Até aí, tudo certo. O problema começou quando li o dado alarmante que afirmava que:


“Aproximadamente 55% das mulheres adultas grávidas consomem bebidas alcoólicas, dentre as quais 6% são classificadas como alcoolistas”.

Achei esse dado realmente preocupante e pensei “De onde ele tirou esse dado?”. “Será que isso se refere às gestantes brasileiras ou às de outro país?”. E, para piorar, no projeto não era mencionada a origem do dado. Seria “fake news” ou ele simplesmente não citou a fonte? Comecei minha pequena investigação para saber se o dado apresentado por ele era real.


A origem dos dados

Exatamente como o vereador escreveu, pesquisei no Google. E adivinha?! Lá estava, no primeiro resultado, o link para uma publicação da Sociedade de Pediatria de São Paulo (chamada Efeitos do álcool na gestante, no feto e no recém-nascido”), de 2010, que continha um parágrafo idêntico ao “escrito” pelo vereador. O parágrafo “original” pertencia ao artigo “Alcoolismo feminino durante a gestação”, do super gabaritado Dr. Herman Grinfeld.

Então, mordi minha língua, o vereador não usou fake news, pelo contrário, ele usou dados de uma fonte científica, publicado pela Sociedade de Pediatria de São Paulo. Naquela hora, fiquei até surpresa; ele não estava tão errado como pensara no início.


Nós, humanos, gostamos de estarmos certos. E, muito comumente, talvez por uma falha na forma como raciocinamos, julgamos “o outro”, antes de analisarmos os dados disponíveis que poderiam nos auxiliar a fazer um “julgamento” mais justo. Sim, agimos errado quando buscamos informações que só confirmem nosso modo de pensar e de ver o mundo. E claro, algo em mim queria confirmar que “aquele vereador óbviamente havia feito m**da”.


Quem errou então?

O vereador fez parte da função dele, se baseou em um dado publicado por uma instituição de renome, fundada em 1970. Mas eu diria que o vereador cometeu dois enganos: primeiro, por não ter citado a fonte científica e, segundo, por não ter questionado os dados alarmantes que o impressionaram.


O médico, por incrível que pareça, cometeu o mesmo engano que o vereador, visto que ele próprio também não citou a fonte da pesquisa. Em seu artigo, o Dr. Grinfeld cita dados de pesquisas sobre o hábito de consumo de bebidas alcoólicas em diferentes países; porém, logo nessa afirmação de que “55% das mulheres adultas grávidas consomem bebidas alcoólicas”, ele não diz quem foi o autor dessa pesquisa e tampouco informa a qual local esses dados se referem.


Provavelmente, quando leu o dado do artigo, o vereador subentendeu a informação como se ela fosse real para qualquer parte do mundo, inclusive em Jundiaí e, por isso, propôs o projeto de lei que visa a conscientização sobre a SAF.


Mas e no Brasil, as gestantes consomem mesmo álcool?

Eu havia compreendido a série de enganos ocorridos tanto pelo vereador quanto pelo médico. Mas afinal, existe algum dado que mostre que, no Brasil, as mulheres têm o hábito de consumir bebida alcoólica durante a gestação? Então, pesquisei em artigos científicos para saber o que outros pesquisadores haviam concluído a respeito do tema.


A realidade é que, no Brasil, o dado (sobre gestantes que consomem álcool) não chega a ser tão alarmante como informado no projeto de lei. Considerando-se que os hábitos de consumo são diferentes conforme a cultura e localidade, é perigoso afirmar que os dados de São Paulo, por exemplo, condizem com a realidade de Jundiaí ou de Itupeva devido somente à sua proximidade.


No Rio de Janeiro, por exemplo, uma pesquisa feita em 2012, apontou que 10% das gestantes entrevistadas tinham o hábito de beber bebida alcoólica durante a gestação. Já em São Paulo, das mulheres entrevistadas, 33,29% disseram que consumiram álcool em algum momento da gravidez (talvez antes mesmo de descrobrirem que já estavam grávidas).

E é necessário mesmo que haja uma campanha da conscientização sobre a Síndrome Alcoólica Fetal em Jundiaí por meio de lei? Talvez, mas sem dados mais concretos, é difícil afirmar. Afinal, como determinar o quão grave é um problema? Existe um número “x” que mereça mais atenção?


A melhor maneira de conscientizar as mulheres seria mesmo exigindo que estabelecimentos que vendem bebida alcoólica exibam cartazes sobre a SAF (como proposto no Projeto de Lei)? Questionável. De qualquer forma, o Projeto de Lei já foi aprovado pela maioria dos vereadores da Câmara de Jundiaí.


Enfim, enganos... meus, do vereador, do médico e "nosso" quando não nos questionamos a origem dos dados.


 
 
 

Comments


©2019 by Vida em Prosa. Proudly created with Wix.com

bottom of page