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Hipocrisia gastronômica

  • Foto do escritor: Paula Pereira
    Paula Pereira
  • 19 de jul. de 2022
  • 4 min de leitura


Uma multidão falando sobre a importância da “liberdade de expressão” e eu tratando minha opinião como se fosse uma peça de roupa de íntima: É para ter, mas não é para mostrar”. Eu não costumo ser tão isentona na vida, mas me dei conta de que restaurante é um ambiente muito propício para uma “omissão inocente”. Não sei que fraqueza é essa, mas se o garçom perguntar o que achei do prato, é muito provável que eu seja agradável, mesmo pensando exatamente o contrário. Mas por quê?


A primeira vez que me dei conta da minha hipocrisia gastronômica foi quando estive em Buenos Aires. Pedi um prato simples, rápido, desses que a gente come e continua a caminhada. O que poderia dar errado num “frango empanado com purê de batata”? Ah, se eu soubesse… O peito de frango empanado chegou gritando: “duro, feito sem amor e sem sabor”. Até lamentei que a refeição fosse tão bem servida, pois só tornaria a minha tarefa de comer ainda mais difícil. Sentados alí no cantinho do restaurante, compartilhei com Sergei minha indignação com o preparo do frango:

“Que frango duro! Essa quantidade toda e não tem gosto de nada! Esse frango tá ótimo é para dar uma chinelada! Não deve nem ser frango de verdade!”.

Eu como pouco e o frango era um monstro. Quase maior do que o prato, cada tentativa de cortá-lo aumentava as chances de um pedaço criar asas e sair voando em direção à outra mesa. Não tinha jeito, eu não ia conseguir comer nem a metade. Fato. Antes de abandonar a tarefa, porém, fiquei imaginando a cara de descontentamento da garçonete ao ver que eu havia comido apenas o purê. “E se ela perguntasse algo, eu diria o quê? A verdade?”. Ah, ela bem que merecia… ela, a cozinheira, o dono do negócio. Aquele frango era um tapa na cara!


Eu queria desaparecer com o frango, ou talvez, só ele mesmo. “Hm, se eu tivesse uma sacolinha plástica comigo”… é, até isso passou pela minha cabeça. Assim como também me ocorreu de irmos pagar no balcão e deixar o frango sozinho na mesa, abandonado, para sairmos ligeirinho sem questionamentos. Olhei pela janela à direita e vi um homem revirando o lixo, à procura algo para comer. “Poderia ser ele a próxima vítima do frango duro, seco e sem sabor?”. Não, não seria justo nem com ele.


Meu marido aconselhou que levássemos o restante para o quarto do hotel - pelo menos essa seria uma boa “desculpa” para não comer o frango no local ou quiçá destiná-lo a uma lixeira que não fosse bem em frente ao restaurante. E eu retruquei:

“Levar para o hotel? Pra comer de que jeito? Se nem a faca de metal corta este frango, imagina a faca de plástico que a gente tem lá. Não tá bom agora morno, vai ficar muito pior frio mais tarde”.

Aquela noite eu estava com a língua afiada para falar mal do frango! Então, quando a garçonete chegou perguntanto se estava “tudo em ordem” com a nossa refeição adivinha o que eu fiz? Eu, com toda bravura escondida na calcinha, respondi docemente e sorrindo : “Sim, tudo bem, mas o frango é muito grande. Posso levar pra viagem?”. Mal pude acreditar na velocidade em que aquelas palavras saíram de mim! Eu poderia ter dito qualquer coisa, não precisava nem ser a “verdade toda”… por que raios eu havia omitido minha opinião?


Eu queria evitar as chances de uma situação desconfortável ainda maior. Eu queria deixar aquele pepino, ou melhor, aquele frango para trás e seguir com minha vida sabendo que eu nunca mais precisaria retornar àquele restaurante. Eu não queria falar a verdade pra ela, também por duvidar que ela própria não soubesse o desastre que havia servido. Então parti do restaurante, me sentindo leve com a mentira que falei e carregando o frango numa sacola plástica que nunca chegou ao quarto de hotel.


Mas dias depois, me vi incomodada por não ter dito o que pensava à garçonete. Eu, que gosto de avaliar restaurantes na internet, perdi a chance de falar “olho no olho” o que eu pensava do serviço prestado. Imaginei que esse incômodo me faria agir de forma diferente em outro “aperto” desses…uhum…


Semanas atrás, em um restaurante aqui em Lviv, pedi a única sobremesa que existia no local: um sorvete de lavanda. “Lavanda? Hm, o que aconteceu com o sorvetinho básico de morango, baunilha ou chocolate?”. Lá fui eu, conhecer a novidade. Mas assim como tem sorvete de menta que lembra enxaguante bucal, o sorvetinho lilás de sabor duvidoso me lembrava amaciante de roupa.


Como terminar a refeição feliz quando a sobremesa - o último saborzinho que fica - te lembra calcinha lavada!?


Não era gostoso, mas comi assim mesmo - comer UMA bolinha de sorvete não era um sacrifício. Eu estava prestes a deixar o restaurante, quando a garçonete me pegou desprevenida querendo saber o que achei da sobremesa. “Bah, e desta vez eu comi tudo!” - pensei comigo. E eu, mais uma vez, ligeiramente, quase sem me dar conta, respondi: “Estava ótimo, obrigada”. Ah, que hipocrisia, Paula! É, vai ver essa mentirinha já virou hábito. Se quiserem minha verdadeira opinião, enviem a enquete por e-mail.

1 Comment


ilamaria.correa
ilamaria.correa
Jul 19, 2022

Belíssimo texto. Esta hipocrisia eu também pratico. Força do hábito de ser educada.

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