Interações desconfortáveis com os habitantes da minha rua
- Paula Pereira
- 29 de set. de 2023
- 10 min de leitura

Eu havia estabelecido um novo objetivo diário: ir até o final da rua, encontrar a gatinha, sentar-me no banco da praça e dar meu colinho pra ela. Enquanto uma mão afagaria o cangote da pequena, com a outra eu responderia mensagens de áudio no celular. O que eu não esperava é que após certos eventos, o meu “plano simples e perfeito” revelaria a minha necessidade em agir com mais assertividade e de aprimorar, inclusive, minha comunicação não-verbal. Digo isso porque as recentes interações que tive com os habitantes aqui da rua, escancararam a minha incapacidade de sair de situações minimamente “desconfortáveis”. Vamos falar claramente: a vida às vezes exige que a gente seja um pouco grossa, diretona; e não aprendi a fazer isso com maestria.
Praças, sabe como é. Todo tipo de gente passa, e senta por ali, geralmente, com um celular na mão: tem os jovens que acabaram de sair da escola e ouvem música nos seus airpods (fones de ouvido sem fio), tem o rapaz que assiste filme em plataformas de streaming, tem as senhorinhas modernas que trocam mensagens no Telegram, tem a moça que fuma um cigarro eletrônico e faz selfie e tem o cara mais velho que sai com o cachorro para dar uma volta. Enquanto um fica de olho nas gatas da área, o outro se amarga lendo notícias pelo celular. E esses não são todos os tipos que frequentam o local. Recentemente conheci outros três. Hoje, corro de pelo menos dois.
A menina desinibida
De quem eu não corro é a menina que deve ter uns oito anos de idade. Naquela quarta à tarde eu já estava sentada no banco com a gatinha no colo quando essa menina de cabelos longos, amarrados em rabo de cavalo, apareceu com a irmã mais velha; uma adolescente. Ao que tudo indicava, aquele era o caminho pra casa e elas voltavam da escola. A pausa no caminho era estratégica. A irmã mais velha sentou-se no banco ao meu lado e esqueceu-se do mundo ao seu redor, talvez até da própria irmã. Ela permaneceu ali imóvel, com os olhos travados no celular, ao passo que a jovem irmã corria de um lado pro outro, saltitante, brincando com todos os gatos à sua volta. Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, vendo que eu também brincava com uma gata no colo, a menina viria interagir comigo. Não demorou quase nada.
Ela veio e como toda criança desinibida, começou a falar como se dispensássemos qualquer introdução. Sua segurança era tanta que, ao cravar os olhos em mim, nem por um segundo pareceu ter cogitado a ideia de que talvez eu fosse “diferente demais” para falar o mesmo idioma. Ela foi simplesmente falando. E eu, entendendo apenas pouco mais que a metade do que ela falava, assim, tão rapidamente, comecei a pensar: “Corto o barato dela agora e digo que não entendo bem o idioma ou deixo ela falar empolgadamente fazendo de conta que entendo tudo?”… Mantive o contato visual e deixei ela falando.
Interromper criança animada mexe comigo. Pra mim, é mais fácil dizer a um adulto “Desculpa, não falo muito bem, mas entendo melhor do que falo”. Agora, para criança?! Ah, eu não queria tirar o pique da menina que, ignorada pela irmã mais velha, parecia ter encontrado em mim uma nova companhia na praça para brincar com gatos. Deixei ela falar e fiquei prestando atenção nas entonações - talvez eu eventualmente percebesse que ela fez alguma pergunta pra mim e eu teria que responder alguma coisa. “Eh… desculpa, não entendi”. Mas o que seria pior? Não sei. Entrei no jogo de quem faz que entende, porém temendo que em breve minha farsa fosse cair por terra.
Ela falou bastante! Contou inclusive uma longa história sobre um gato que ela tinha em casa e que por algum motivo fugiu e nunca mais voltou. Pena que não entendi muito bem, parecia ter sido mesmo uma história interessante. Percebi, no entanto, que eu precisava dizer alguma coisa. Aquele monólogo tinha que se tornar em um diálogo ou eu ia parecer uma pessoa sem educação, que nunca responde nada, ou que fosse “muda” mesmo. Achei então que repetir algumas palavras que ela dizia daria a impressão de que eu estava ciente do que ela informava. E assim fui repetindo, uma palavra aqui e acolá, como um papagaio aprendendo a falar.
Jogando castanhas com força pelo chão para atrair a atenção dos gatos, a menina explicou:
— “Uma vez joguei a castanha lááá embaixo - mostrando a direção com suas mãos -. Sabe o que a gatinha fez? Ela subiu o morro correndo com a castanha nos dentes e trouxe de volta pra mim”.
— “Ah, lá embaixo?!”, repeti usando as palavras que reconhecia com facilidade.
— “Essa gata e o irmão dela gostam de brincar de pegar castanhas. Sempre que venho aqui eles brincam de pegar castanha, correm atrás dos gravetos e brincam de se esconder nos arbustos do jardim. Eles são muito inteligentes”.
— “Ah sim, inteligentes mesmo!”, confirmei.
Apesar de eu ter falado pouquíssimo, a menina não pareceu incomodada com o meu silêncio “parcial”. Incomodada estava eu, queimando meus neurônios para conseguir acompanhar a conversa. Eventualmente, aproveitando a distração dela com um gato que estava mais distante, fui embora e fiquei pensando em quantos encontros levariam até ela entender que o meu vocabulário em russo equivale provavelmente ao de uma criança de cinco anos.
O da blusa amarela
Outro ser frequenta aquela rua, diariamente, geralmente após o almoço. Noto ele à distância. O fato de estar sempre com a mesma blusa amarela, de aparência meio suja e com a careca opaca, me faz pensar que talvez ele seja sem-teto Ele está sempre no mesmo “ponto” e, no último banco da rua, atrás do jardim, ele se senta, onde parece facilmente ignorar a linda vista do porto. Ele está sempre sozinho e ocasionalmente tira um cigarro pra fumar. Não sei se bebe, algumas de suas atitudes me fazem pensar que sim. Resmunga sozinho, emite uns sons estranhos e olha descaradamente a alegria alheia sem a intenção de estabelecer um contato sequer.
Aquela era a quarta vez que eu ia ver a gata no período da tarde e todos os dias eu enxergava este senhor de amarelo; no mesmo lugar. Tenho a impressão de que ele também me notava indo em direção ao banco em frente ao jardim, não muito distante de onde ele ficava. Por ali sentei, aguardando a gatinha aparecer na área. Enquanto ela não chegava, tentei ficar confortável no banco e usei aquele momento para enviar mensagens aos amigos do Brasil. Não posso dizer que consegui relaxar, pois logo notei o ser da blusa amarela olhando na minha direção.
A verdade é que não fico à vontade perto de pessoas que se comportam de forma “imprevisível”. Eu não emito ruídos com minha boca sem um objetivo claro, não faço gestos aleatórios com as mãos e nem fico fitando todo esquisito que passa por mim. Permaneço imóvel, na minha, e mesmo quando de óculos de sol, olho só de cantinho. O da blusa amarela, porém, aparentemente incomodado com a minha presença há dez metros de distância se levantou do banco e, sem sair muito do lugar, começou a chutar castanhas na minha direção. Como reagir? O que pensar? “É louco ou é violento”, pensei comigo. Ignorei a possibilidade de ele querer puxar conversa “brincando de chutar castanhas”, e sem esperar para ver o próximo capítulo desta novela, achei melhor partir. Como dois seres disputando o domínio dos bancos e seus arredores, naquele instante, ele certamente havia demarcado seu território: perto dele, só senta quem ele quer. Saí de fininho sem olhar para trás, tentando não demonstrar medo, e decidida a nunca mais buscar assento enquanto ele estiver por ali.
O senhor gentil e abusado
Certa manhã eu estava no banco com a gatinha no colo. Um senhor muito gentil passou com uma vassoura na mão, olhou para nós e disse algo como “Brincando com a gatinha?!”. Sorri, afirmei e ele seguiu viagem dizendo “Agora vou trabalhar”. Sei lá, sempre me gera uma sensação gostosa quando um estranho não me vê como estranha; como algo a ser ignorado e afastado. Mais feliz fico quando essa minha cara incomum, ao invés de afugentar, aproxima alguém que queira simplesmente dar um bom dia, pedir alguma informação e puxar conversa. Me sinto mais “integrada” à sociedade. Sou diferente, mas eles me tratam bem.
Na semana seguinte àquele breve encontro, o mesmo senhorzinho aparece. Sem vassoura na mão, de chinelo e caminhando pela rua onde passo todas as manhãs. Ele me reconhece e senta-se ao meu lado para puxar conversa. Parece um senhor humilde que também gosta de gatos. “Só pode ser gente boa”, penso comigo. Ele fala russo, numa fala já um tanto desgastada pela idade e de sorriso incompleto. Eu entendia uns bons 70% do que ele dizia, mas logo de cara avisei sobre o limite da minha comunicação. Tive a impressão de que para me ajudar, ele até começou a falar mais devagar e não se incomodou com as vezes em que eu disse “Desculpa, não entendi”.
Diferente da menina de oito anos que falava sobre os gatos, este senhor logo começou a fazer perguntas a meu respeito. Na Ucrânia, muitas dessas conversas se iniciam com alguém me perguntando “Você estuda aqui?”. Há muitos estrangeiros que vem pra cá estudar, mas eu já chegando aos 40 é praticamente um elogio ser confundida com uma estudante. E a conversa seguiu naquele ritmo, comigo explicando os fatos: “Meu marido é daqui”, “Moro em Odessa há dois anos”, “Não podemos ter gatos em casa etc etc”. Quando ele me pergunta “Você tem filhos?”, explico que não e pergunto a ele sobre sua família. Fico sabendo que ele tem três filhos, três netos e que mora alí perto. O papo ia bem e eu até me sentia orgulhosa por estar mantendo a conversa apesar da minha insegurança com o idioma. Só que em breve o tom da conversa tomou um rumo meio delicado…
Acho normal que perguntem se tenho filhos, todavia é um pouco “além da conta” quando a pergunta seguinte é “Por que não?”. A explicação é um tanto quanto pessoal. Não é para qualquer um que digo “Porque não consigo ter”. Só que somos adultos, e ele já bem mais vivido do que eu. Achei que “falar a verdade” não deveria ser tabu nenhum, afinal, esse tipo de coisa acontece. De qualquer foma, tal pergunta me acendeu um primeiro alerta de desconforto. E ele prosseguiu com: “Você e seu marido foram ao médico? Fizeram exames?”… Hm, aí o alerta piscou mais forte e comecei a achar aquele papo íntimo demais. “Mas Paula, não é exatamente isso o que as pessoas querem saber quando você diz que não consegue engravidar?”, amenizei a razão da sua pergunta a mim mesma. Eu não queria dar explicações e até tentei encontrar uma forma de mudar de assunto, mas não consegui pensar em nada muito rápido e respondi “Sim”; de forma simples e curta, para não dar espaço à mais indagação. Não adiantou. Ele fez outra pergunta, desta vez, porém, eu não havia entendido absolutamente nada:
— “Desculpa, não entendi. O que isso significa?” - perguntei já preocupada em responder algo “inapropriado” a uma pergunta potencialmente perigosa.
E ele, apontando para a gata que eu acariciava, muda as palavras e diz “Seu marido faz isso que você faz no gato?”, e logo em seguida “passa a mão (ou faz carinho)” no meu joelho. Puxa, você jura que ele tocou em mim!? “Isso já é meio que além da conta né, Paula?”. Mas olhando ali para aquele avô de três netos fiquei sem reação. “Será que eu estou pirando sobre uma coisa inocente?”. Oscilei, não tinha qualquer manual explicando o que fazer. Por fim, respondi que eu e meu marido somos ótimos juntos e fui me levantando do banco para dar comida aos gatinhos. Demonstrei urgência falando que eu tinha que ir embora.
Ele também se levantou e disse algo como “Fala pro seu marido que é isso o que ele tem que fazer”... e ele veio em minha direção como se fosse contar uma dica infalível e que ninguém mais podia ouvir. Nessa hora eu devia ter me tocado de que nada do que ele pudesse dizer seria coerente vindo de um estranho que já se mostrou ser “atrevido”, porém, caí na armadilha como um rato cego no escuro. Me curvei, como que para ouvir melhor o segredo a ser revelado e, de repente, ele pôs a mão na minha cintura e lascou um beijo na minha bochecha! Quando me dei conta já era tarde! O beijo já havia acontecido. Ergui as mãos o mais rápido possível em sinal de protesto e ele ainda disse ligeiramente, como se quisesse que eu retribuisse: “E você dá outro nele” virando a face pra mim. “Perdeu a noção esse cara!”. Pior é que eu, sem saber demonstrar apropriadamente minha indignação - pois não queria sem grossa nem fazer cena - fiz meu sinal de “Pare” na cara dele e soltei um “Eu tenho que ir embora, tenha um bom dia”.
“Tenha um bom dia, Paula?”, não acredito que falei isso! Que desastre! Arrrrgh, que mensagem é essa? Eu estava furiosa, o que eu mais queria fazer era chegar em casa logo e nunca mais ter que ver aquele senhorzinho. “Como pode?! O que fez ele pensar que estava no direito de fazer isso?”, eu queria entender. Num primeiro instante, fiquei furiosa comigo mesma. Me culpei por ter sido simpática demais, por ter permitido que me perguntassem coisas pessoais às quais eu não estava à vontade para responder. Voltei pra casa resmungando em silêncio e pensando que talvez fosse melhor nunca mais ir ver a gatinha para não encontrar aquele senhor de novo.

Há pouco mais de dois meses neste novo endereço, a rua por onde faço caminhadas, dou “Bom dia” para os senhores e senhoras que me reconhecem todas as manhãs e onde me encontro com os gatinhos, já dava a sensação de ser “minha”. Me sentia bem segura, tranquila e sabia até mesmo em que banco eu ia sentar e por qual gato esperar - como o senhor de amarelo, eu tinha “o meu ponto”, pelas manhãs. Conforme fui testando outros horários, outras interações foram acontecendo. Me dei conta de que os frequentadores regulares daquela rua, são regulares apenas em determinados horários. Até os gatos parecem percorrer outras ruas ao longo do dia.
Interagir com “estranhos” às vezes surpreende. Não é todo mundo que está pronto para responder um “Bom dia” e tem outros que não parecem prontos pra responder coisa alguma - vai ver foi assim que a menina de oito anos me viu. E tem gente que, por grosseria ou falta de habilidade, interage de forma estranha chutando castanhas na sua direção. Nossa capacidade de comunicação, principalmente a não verbal, às vezes precisa ser posta em prática também. Se as palavras lhe faltam à memória, como impor respeito e demonstrar insatisfação sem perder a linha? Não sei se tem manual pra isso e talvez muita gente aprenda só na prática.
Eu pensei bastante na forma como reagi. Pensei no quanto não falei direito, não expressei direito e percebi que, sem saber fazer melhor, saí de cena, corri. Aprendi alguma coisa “fugindo”? Hm, creio que sim. Talvez isso tenha me ajudado a ver que preciso melhorar a minha comunicação verbal (estudando mais, fazendo uma lista de expressões de emergências) e também a comunicação não-verbal (sorrir menos, ter um olhar mais sério diante de assuntos desconfortáveis e não correr só porque chutaram castanhas na minha direção). Afinal, não posso deixar de andar “na minha rua” só por causa desses incômodos, certo?
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