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Oficiais à porta

  • Foto do escritor: Paula Pereira
    Paula Pereira
  • 18 de jul. de 2024
  • 5 min de leitura


Poderia ter sido a cena de um filme: no carro parado do outro lado da rua, um homem impaciente esperava as duas mulheres que saíam às pressas do prédio; uma manca cheia de preocupações e outra de semblante leve a passos firmes - talvez fosse um daqueles filmes que começa pelo fim e no decorrer da história você fica sabendo o que as trouxe até aquele momento. Certamente veríamos o trajeto do táxi, a conversa reservada no banco de trás e para onde elas se dirigiam, mas não. A cena corta para o apartamento onde um saco de lixo está à porta. O homem que estava encarregado de botá-lo para fora parece ter outros planos. Ele retira a chave do bolso e a coloca sobre a mesa, deixa os calçados na entrada e troca a calça jeans pelo leve shorts de tactel. Ele parece estar vindo de algum lugar, mas como pode estar chegando se nunca saiu? Um mistério paira no ar, enquanto o tempo voa.


Voltamos às mulheres, agora na clínica médica. Uma música de suspense toca ao fundo e a conversa com o médico não deixa claro se as notícias são boas. Ele sorri com a segurança de quem tem tudo sob controle e entendemos quando ele pronuncia “Você tem alguma dúvida?”. A manca diz que não e se despede enquanto a outra o deseja um bom dia. Elas vão embora e chamam outro táxi. A polida, e mais velha, desce em um ponto do trajeto; a estrangeira manca ainda está longe de chegar. Ela pega o celular, envia uma mensagem ao marido avisando que está a caminho e lamenta não ter enviado notícias mais cedo, assim que saiu de casa. Ao seu pedido de desculpa ele apenas responde: “Não se preocupe, já me encontrei com eles”. O que foi que aconteceu?!


Ela esteve ausente por não mais que duas horas… “Dentre todos os dias, dentre todos os momentos, tinha que ser logo agora?”, ela está ansiosa para saber o que se passou. O taxista não a deixa na porta do prédio, ele para na esquina da quadra e mentalmente ela o julga “Não notou que estou manca?!”. Ao descer do carro, ela vê logo adiante um carro com estampa militar. Há três soldados e dois oficiais de uniforme preto, em pé, parados, armados, conversando. Nada a faria passar despercebida e não havia como se apressar, manca. Ela seguiu a passos lentos e até tentou parecer destemida, mas certamente exitou quando sua curiosidade foi notada por um dos oficiais. “Bom dia”, ela disse, certa de que não havendo mais ninguém a questionar por perto, eles se interessariam em fazer-lhe alguma pergunta. Afinal, o que eles faziam ali? “Bom dia”, ele respondeu. Os oficiais conversaram entre si algo em russo, e ela seguiu com os olhos e ouvidos na nuca em direção ao prédio.


Ao entrar, pelo menos no térreo, parecia tudo calmo, tudo normal. Talvez fosse um bom sinal. Tomou o elevador, chegou ao sétimo andar, abriu a porta do apartamento e foi logo removendo os calçados com a pressa de quem quer despir a verdade do marido: “O que foi que aconteceu? O que eles queriam?”. Ele vem, parece bem, embora não possa sentir a adrenalina que corre em seu corpo. “Eles queriam saber tudo”, ele responde e começa a narrar as cenas passadas, porém inéditas daquele mesmo filme. Eu conto a você:


Era cerca de sete da manhã quando a campainha do apartamento tocou. O casal já havia tomado o café da manhã; naquele instante ela se arrumava para ir ao médico e ele colocava o tênis para dar uma volta e levar o lixo para fora. As oito altas repetições automáticas da campainha pausaram tudo: eles fingiram estar dormindo, ou quiçá, simplesmente ausentes. Logo ficou claro que demais campainhas do sétimo andar eram tocadas e ela podia ouvir quando dois homens conversavam à porta. Imaginou que talvez fossem os novos vizinhos, ainda desconhecidos. “Precisariam eles de algo? Mas por que não se idenficar? E por que tão cedo?”… Pior seria se não fossem os vizinhos.


Passados dez minutos, silêncio. O marido disse: “Não vou agora e quando você sair, veja se está tudo normal lá fora, se tem algum carro do exército na rua… podem ser recrutadores, depois me manda mensagem, assim eu saio para caminhar”. Ela sabia muito bem do risco. Porém, sua atenção se desviava para o fato de que, muito em breve, ela chegaria atrasada à consulta. Ela esperava a sogra que vinha a pé. A sogra chegou e devido à pressa, mal conversaram, chamaram logo um táxi. Ao sair do prédio, nada chamou a atenção. Ou simplesmente não notaram? Foram à consulta. E ela esqueceu de escrever ao marido.


Ele, que ficou em casa, sem receber a notícia da esposa, imaginou que estivesse tudo tranquilo, sem perigo. Passada meia hora de espera, vestiu novamente a calça jeans, o tênis e a camiseta, pegou o saco de lixo e desceu. Ao abrir a porta do prédio, deu de cara com dois oficiais: um de preto e um militar, talvez até felizes por vê-lo: “Você mora aqui? Onde estão seus documentos?”. E é assim que ficamos sabendo o drama que se passou durante o horário da consulta, enquanto a manca não estava em casa.

Primeiramente, não eram recrutadores, embora não traga menos tranquilidade quando eles querem saber tudo a seu respeito: “Há quanto tempo mora aqui? O apartamento é seu ou alugado? Com quem vive? Se alistou no exército? Tem o aplicativo do governo instalado no celular?Por que escolheu este lugar?”… “A vista”, e ele os convidou a entrar. “Você vê as explosões no porto daqui?”, “Sim”, “Você fotografa as explosões?”… “Eh… sim, mas não envio a ninguém”, “Me passa seu celular”… a última foto é exatamente da explosão que aconteceu dias atrás. Um risco, um crime... visto por outro oficial mais linha dura, isso acabaria mal. Os documentos pessoais foram checados e todas as páginas do passaporte fotografadas. Onde irão parar esses dados? Péssima hora para questionar.


Eles não eram obrigados a dar satisfação, mas deixaram claro que estavam a procura de traidores, de pessoas que estariam enviando fotos ou informações aos russos antes e após os ataques ao porto da cidade. Não saberemos “o que”, ou melhor, “quem” os levou até aquele prédio, mas certamente haviam pistas. Os oficiais quiseram saber se ele havia notado alguma “atividade suspeita”. “Mal conhecemos nossos vizinhos.. mas tem um cujo nome da rede wifi é USSR2”. Talvez servisse de algo. O resultado da investigação foi um susto imenso no marido e uma chamada de atenção pelo registro da explosão. A esposa, que só chegou mais tarde, ficou aliviada por simplesmente ter encontrado o marido em casa pois, nos dias de hoje, em que o recrutamento não é apenas um “convite”, essa história poderia ter acabado bem diferente…

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